Na noite de 17 de novembro de 2025, o Chile viu sua democracia se dividir em dois extremos. Jeannette Jara, candidata comunista e ex-ministra do Trabalho do governo de Gabriel Boric, venceu o primeiro turno com 26,8% dos votos — cerca de 340 mil votos à frente do segundo colocado. Mas o que realmente chamou atenção não foi a vitória dela, e sim o quão perto José Antonio Kast, advogado ultracatólico e líder da extrema direita, chegou: 23,9%. Um vácuo de apenas 2,9 pontos entre os dois candidatos mais polarizados da história recente do país. O segundo turno, marcado para 14 de dezembro de 2025, não será apenas uma eleição. Será um julgamento coletivo de um governo desgastado, de um povo frustrado e de um sistema político que falhou em renovar-se.
O pêndulo chileno e o desgaste de Boric
O governo de Gabriel Boric entrou na reta final com aprovação abaixo de 30%. Não foi apenas a inflação ou a economia lenta — foi a sensação de que nada mudou. A coalizão de esquerda Frente Ampla chegou ao poder prometendo transformação profunda, mas não conseguiu aprovar nem metade de suas propostas no Congresso Nacional. O desemprego continua em 9%, como se a pandemia nunca tivesse acabado. A insegurança cresceu. E os chilenos, cansados de promessas, rejeitaram duas constituições em menos de dois anos — uma da esquerda, por ser radical e mal redigida; outra da direita, por ser ainda mais dura que a cartilha de Pinochet, que deixou mais de 3 mil mortos e desaparecidos.Jeannette Jara: a comunista que não quer ser Boric
Jeannette Jara é histórica. Primeira militante comunista da ala progressista a chegar ao segundo turno presidencial. Mas ela sabe que não pode se apresentar como a herdeira de Boric. Durante a campanha, evitou mencionar o presidente, focou em políticas sociais concretas: aumento do salário mínimo, controle de alugueis e investimento em saúde pública. Na noite da vitória, disse algo que ecoou por todo o país: "Os desafios são imensos". E prometeu ouvir "quase metade dos chilenos que não votaram em mim nem em Kast". Isso é sábio. Porque 49,3% dos eleitores — quase metade — não escolheram nenhum dos dois. Eles são o segredo do segundo turno.Kast e o apelo da ordem
Enquanto Jara fala em justiça social, Kast fala em ordem. Seu discurso é direto: controle rígido da imigração, redução de impostos para empresas, reforma da previdência e polícia forte. A imigração é o seu ponto mais forte. Com 337 mil estrangeiros sem documentos — a maioria venezuelanos fugindo de Maduro — a percepção de que o país está "inundado" é real, mesmo que os números sejam menores do que em outros países da região. Kast não precisa convencer ninguém de que o sistema está quebrado. Ele só precisa dizer que ele é a solução. E muitos estão ouvindo.Francesco Parisi: o terceiro que pode decidir tudo
A maior surpresa da noite? Franco Parisi, populista de direita, terminou em terceiro com 19,5%. Isso não é apenas um número. É um aviso. Parisi atraiu eleitores que não confiam em Kast — mas também não querem Jara. Muitos são moderados, empresários, jovens que rejeitam o discurso radical. Seu apoio pode ser a chave. Se Parisi endossar Kast, a direita vence. Se ele incentivar seus eleitores a votar em Jara — o que seria improvável, mas não impossível — o equilíbrio muda. A política chilena não é mais binária. É um quebra-cabeça com peças soltas.Um país em choque
A participação recorde de 85% mostra algo essencial: os chilenos não estão apáticos. Estão furiosos. Eles querem mudança, mas não sabem em que direção. O que aconteceu nas urnas não foi uma vitória da esquerda nem da direita. Foi o colapso do centro. O que restou foi o extremo. E o pior: ninguém tem um plano claro para unir o que se partiu. O governo Boric, mesmo em seu último suspiro, parabenizou os dois candidatos. Mas ele sabe: sua legado está em ruínas. E o próximo presidente — seja ele de qual lado for — herda um país que não acredita mais no sistema.O que está em jogo em 14 de dezembro
Se Jara vencer, será o primeiro governo comunista desde Allende — e a primeira mulher presidente da história do Chile. Mas ela terá que governar com um Congresso que a rejeita. Se Kast vencer, o país entrará em um novo capítulo de conservadorismo radical: mais polícia, menos imigração, menos Estado. E a economia? Ele promete cortes, mas sem dizer onde. Nenhum dos dois tem maioria. Nenhum dos dois tem consenso. E os chilenos? Eles vão votar não por o que querem, mas por o que menos temem.Frequently Asked Questions
Por que Jeannette Jara está sendo comparada a Salvador Allende?
Jeannette Jara é a primeira candidata comunista a chegar ao segundo turno desde a queda de Salvador Allende em 1973. Embora sua plataforma seja mais moderada e focada em direitos sociais, a associação histórica é inevitável. Allende foi o primeiro presidente socialista eleito democraticamente na América Latina, e seu governo terminou com um golpe militar. Jara tenta evitar esse paralelo, mas os adversários usam essa memória para gerar medo.
Como a imigração influenciou o resultado da eleição?
Com 337 mil imigrantes irregulares — quase 2% da população — a imigração se tornou o principal tema de campanha. Kast transformou isso em um discurso de segurança nacional, enquanto Jara propôs regularização com base em direitos humanos. Pesquisas mostram que 62% dos eleitores consideram a imigração um problema grave, e 41% disseram que isso foi decisivo para seu voto. Parisi também explorou esse tema, mas sem a mesma força.
Por que os chilenos rejeitaram duas constituições em dois anos?
A primeira proposta, de esquerda, foi vista como excessivamente radical e mal redigida, com cláusulas que ameaçavam propriedade privada e autonomia regional. A segunda, de direita, foi rejeitada por ser mais autoritária que a constituição de Pinochet — inclusive por manter estruturas de poder militar e limitar direitos sociais. O povo não queria nem o passado nem o extremo. Queria um meio-termo, mas ninguém o ofereceu.
Qual é o impacto da alta participação eleitoral?
A participação de 85% — a mais alta da história chilena — mostra que os eleitores não estão desiludidos, mas intensamente engajados. Isso aumenta a legitimidade do resultado, mas também a pressão sobre o vencedor. Um governo eleito com esse nível de envolvimento não pode ignorar as demandas. Se falhar, o descontentamento pode se transformar em protestos de massa, como os de 2019.
Franco Parisi pode mudar o resultado do segundo turno?
Sim. Com quase 20% dos votos, Parisi tem mais eleitores do que qualquer candidato que já perdeu em um segundo turno no Chile. Se ele apoiar Kast, a vitória da direita se torna provável. Se seus eleitores se dividirem — ou se Parisi fizer um apelo por um voto "tático" contra Kast — Jara pode vencer por uma margem estreita. O movimento de Parisi nos próximos dias será o fator decisivo.
O que acontece se ninguém vencer por maioria absoluta?
No Chile, o vencedor do segundo turno é sempre o que tiver mais votos, mesmo que não seja maioria absoluta. Não há necessidade de 50% + 1. Isso significa que Kast ou Jara podem vencer com menos de 40% dos votos, caso o restante se divida. É por isso que a estratégia de campanha nos últimos dias será focada em atrair os eleitores de Parisi — e não apenas em mobilizar a base.